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PERFECT DAY


'A Perfect Day', Joana Hadjithomas, Khalil Joreige, Lebanon, France, 2005

Neste retrato de uma personagem e da sociedade que o rodeia, Malek e a sua mãe lutam contra a inerente inércia depois de 15 anos desde a guerra civil libanesa quando milhares de pessoas desapareceram, incluinod o pai de Malek. O título e a situação lembram o optimismo do clássico de Lou Reed e a banda sonora do filme apenas reatesta essa força positiva. O filme que foi apresentado no 14º Festival de Curtas de Vila de Conde 2006 apresenta o mais recente projecto de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, compondo um documento histórico que fixou no tempo a Beirute actual - pós-guerra civil pré-ataque israelita.

Preso no trânsito, Malek avista Zeina, a mulher que ele ama. escrevendo mensagens ao telemóvel ele tenta desesperadamente alacançá-la, mas está claro que ele não o quer ver mais... a sua mãe Claudia não aceitou ainda o desparecimento do seu pai. Ela permanece em casa caso o seu marido retorne, enquanto Malek conduz pela cidade sozinho. Cada um deles vivendo com o vazio de um amor perdido. Mas hoje pode ser o dia perfeito para deitar por terra os fantasmas do passado. Malek acompanha a sua hesitante mãe que finalmente declara o seu marido morto na ausência de um corpo. e nessa noite Zeina parece estar pronta para dar uma segunda oportunidade a Malek.



O filme retrata a moderna Beirute, não a Beirute que vimos ser destruída pelo telejornal, numa actualização do espectáculo da guerra do golfo, mais crua e sem efeitos especiais, mas a Beirute de um médio oriente que se torna actual, cosmopolita, urbano, pseudo ocidental.
Vemos Beirute pelos olhos de Malek, um jovem muçulmano que se remonta do passado, não com diálogos profundamente elaborados, mas por sequências de acções simples, que atestam a componente pessoal e individual do filme. Toda a história se desenrola, com um recurso minímo a diálogos complexos que explanifiquem o que se passa dentro das personagens, antes se serve do olhar destes, a troca de olhares entre os indivíduos, o seu posicionamente e comportamento no espaço, revelando esta fusão da tradição no mundo moderno, reconstruido da nova Beirute.

O trabalho de actor revela-se na ausência deste, e na total entrega do seu corpo à personagem, a fotografia resume-se à captação do mais vulgar efeito abstracto das luzes nocturnas quando se trespassa a cidade e, aí, sente-se a personagem omnipresente em todo o filme, a própria cidade, a Beirute do sonho, a reconstruida Beirute que congrega a força das personagens e da sociedade que a construiu de novo.


O filme parece um prenúncio do futuro próximo da Beirute novamente destruída, e a última cena, quando acompanhamos Malek ao acordar na avenida junto ao Mediterraneo, depois de ter passado a noite ao relento, apenas recorda que acordamos todos os dias para viver novamente.
A corrida descompassada a que Malek dá início, com múltiplas paragens abruptas e recomeços fugazes apenas atesta a história de Beirute e a nossa história pessoal.

TIMES 3


















Three Times A Time for Youth, 2005 , de Hou Hsiao Hsien

Como sentimos a passagem do tempo? Como uma sensação a qual não possuiremos outra vez. Lembramo-nos dele não porque foi um momento maravilhoso, mas porque o perdemos para sempre, só podemos relembra-lo com a nossa memória, por isso mesmo é tão maravilhoso.
Assim sentimos a passagem do tempo, a vida a passar fugazmente por nós, esventrando a nossa realidade pela lembrança de um tempo passado, ou um tempo que há-de vir.
Hous Hsia Hsien, apresenta-se com Three Times como cronista da nossa própria mortalidade, filmando de forma sublime a implacável presença do passado e a impermanência do presente futuro. Hou evoca através de três momentos diferentes na história de Taiwan, um tríptico atravessado por três histórias de Amor. Com os papéis principais sempre a cargo do mesmo par de actores - uma camaleónica Shu Qi e Chen Chang -, Hou abraça aqui a ideia da reencarnação - as diferentes personagens têm não só a mesma aparência física, como trazem também memórias de outras vidas - e do amor eterno.

Three Times começa em 1966 num dos inúmeros salões de bilhar de Taiwan, com 'Smoke Gets in Your Eyes' (The Platters) acompanhando os jogadores em volta do bilhar. 'A Time for Love', assim entitulado retrata a crescente atracção quase imperceptível entre um jovem recruta militar e a jovem do salão de bilhar. Na volta do serviço militar, o recruta descobre que ela partiu, produzindo assim uma poderosa metáfora da nossa passagem fugaz pela terra, preservando aquele momento inesquecivel na nossa memória, mas relembrando-nos que este já passou. Encetando uma odisseia através do país, Hou intercala os ambientes languidos dos salões de bilhar, com os fugazes percursos entre as terras, num registo nostálgico da época e da sua própria juventude, aparentemente auto-biográfico. O reencontro dos dois finaliza com o toque tímido das suas mãos contra um fundo de reflexos luminosos de um piso humedecido por uma noite chuvosa, uma imagem que, à partida, podia se considerar cliché, mas que aqui se materializa de forma sublime, e carregada de uma beleza nostálgica. Hou retrata o amor mais inocente, mais verdadeiro, com um subtexto marcado pela esperança, aquele que nos vai ficar na memória.



Regressamos a 1911, numa reconstituição mais focada na estrutura social, reconstituindo o ambiente de um bordel do início do século - revisitando 'Flowers of Shanghai'. 'A Time for Freedom' reconstitui uma nova era, uma nova história de amor, e, uma novo registo formal, mimetizando o cinema mudo do início do séc. XX - todos os diálogos são apresentados de forma escrita, apesar de se ouvir uma banda sonora, o efeito de flash-back, apenas é enfraquecido pelo som de algumas acções mantido em algumas cenas -, embora mantendo o estilo de Hou com os seus longos planos de filmagem de enquadramento muito cuidado. De todos, o retrato mais político, apresenta o romance entre uma consorte e um jovem escritor-activista que luta pela independência de Tawain do Japão. O prazer estético que advém das formas ritualistas em que a sua relação se desenvolve, em nada perde o seu significado e cada pormenor parece ganhar uma presença asfixiante, que corrubora o título algo irónico de 'A Time for Freedom' em que a mulher presa sofre em silêncio, enquanto o seu amado luta pela libertção do povo.



Um corte abrupto, reposiciona-nos numa via rápida da Tawain actual, perseguindo um casal numa mota a alta-velocidade. A liberdade aparente não é menos tiránica neste retrato de 2005, 'A Time for Youth', mostra-nos um cantora de rock epiléptica que deambula por entre noites em discotecas, relações de ocasião e disputas entre amantes. O retrato de uma sociedade cheia de gadgets tecnológicoscomo a internet, o blogging, o e-mail e os telemóveis , mas que nem por isso comunica, numa materialização de um mundo sem significado, sem valor, sem história. Hou apresenta o mundo mais liberto, em que uma rapariga pode amar outra rapariga e o desejo carnal é claramente exprimido e sentido. Relembrando 'Millenium Mambo', retraça a relação entre a sua amante homosexual e um jovem fotógrafo, que se intercruzam morbidamente. Não será difícil perceber a escolha de uma tão fantástica história para retratar a sociedade contemporânea, em que Hou manipula uma série de símbolos claramente datados, provando a sua capacidade para apresentar a solidão e desespero da geração X do novo milénio. O foco sobre um grupo sem grandes perspectivas ou objectivos ganha aqui um tom mais recriminatório, em parte facilmente entendido pela própria experiência de Hou muito mais assente na aura nostálgica dos anos 60, infundida pela vigor da juventude e impulsos mais adolescentes, na inocência do amor.

Em todos os tempos, Hou criou um cinema que nos força a pensar sobre as relações entre o pessoal e o político, entre o passado e o presente, a memória e o futuro. Consegue filmar de forma intima a alma das suas personagens, as emoções que as esventram e dilaceram como o poema que o jovem escritor de 'A time to Freedom' declama: 'Embora este lugar tenha dilacerado meu coração, este me massacra para o deixar'. Hou filma a dor no limite da experiência humana, mas encontra conforto na sua eternidade. No momento em que eles apertam as mãos, em que a consorte cobre os espelhos, em que a moto pára debaixo de uma ponte, nós vemos as personagens a viver o passado, o presente e o futuro simultaneamente.

"Ni passé, ni avenir. Juste un présent affamé" Shu Qi em 'A Time for Youth'


Three Times, o novo filme de Hous Hsiao Hsien quase que podia ser visto como três curtas metragens. O filme incluído no 14º Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde, compunha com 'Millenium Mambo' e 'Flowers of Shangai' uma retrospectiva do realizador chinês de Taiwan, com uma obra que se distingue por um excepcional rigor formal e estético. Shu Ki é absolutamente brilhante, na forma camaleónica como se transforma e ganha vida como personagem das distintas eras; a musa de Hou Hsiao Hsien prova ser uma actriz de múltiplos espectros e de uma consistência interpretativa fora de vulgar.

SUITE


























LE POMPIER : "...excusez-moi, j'ai l'ordre d'éteindre tous les incendies dans la ville."
IONESCO SUITE de Eugène Ionesco
de Emmanuel Demarcy-Mota, La Comédie de Reims

Estar ao corrente é já estar atrasado; é preciso correr mais, é preciso saltar para a etapa seguinte” Ionesco
O termo suite aparece pela primeira vez numa recolha de danças de Attaingnant publicada em 1557 – trata-se de uma sucessão de movimentos mais ou menos rápidos (gavota, courante. entre outros).
Ionesco Suite é um composto de retalhos de Eugéne, o dramaturgo 'absurdo' que aqui encontra a materialização precisa do seu delírio imagético na encenação depurada e despojada de Emmanuel Demarcy-Mota.
'Os temas da acumulação e da proliferação, a rejeição das convenções, um certo tipo de empenhamento pelo teatro, uma desconstrução dos códigos das linguagens misturada com um perpétuo fascínio perante as palavras' constrói a obra de Ionesco a qual continua a ter uma inegável presença na memória colectiva. Encarado como um laboratório, a encenação propõe um work in progress, nunca terminado, jamais estagnado, que flutua na profundidade de textos sempre actuais, sempre reutilizáveis, na produção de um 'um espectáculo de geometria variável onde o número de actores, papéis, sequência de cenas, podem sofrer alterações, constituindo-se numa espécie de rapsódia teatral'.
Tudo parece retornar à quotidiana banalidade da reunião familiar, uma longa, quase infinita mesa, que se deixa habitar pelas personagens 'absurdas' da realidade de cada um, numa qualquer festa que não tem fim nem propósito. O propósito não é a festa, é o comportamento dos indivíduos nesta, e como a pressão quotidiana e a confluência de diferentes forças, provoca a reacção deste perante o outro - os outros.
Envolto numa comicidade preversa, 'se decidirmos encetar com ele um diálogo, é provável que a Sua visão do Nosso mundo nos transtorne efectivamente. Subtrair o teatro à realidade. Com humor, sim, mas um humor burlesco. Um cómico duro, sem finesse, excessivo. Nada de comédias dramáticas, tão-pouco. Mas regressar ao insuportável. Levar tudo até ao paroxismo, até às fontes do trágico. Fazer um teatro violento: violência cómica, violentamente dramática. Evitar a psicologia, ou melhor, conferir-lhe uma dimensão metafísica. O teatro advém do exagero extremo dos sentimentos, exagero esse que provoca a disjunção da frouxa realidade quotidiana', como Emmanuel Demarcy-Mota refere.
Ionesco cria este clima de estranheza, abrindo espaço ao campo da invenção, não deixando que nos 'instalemos nos hábitos'. Por detrás da graça, da loucura dos desvarios do absurdo, reside a real tensão, uma verdade e uma humanidade inegáveis, incómodas, como quando nos sentamos à mesa em família, tudo está lá. Daí que se recrie este efeito intimista com o público, numa encenação em que os próprios actores começam como espectadores, e, a certo ponto, os espectadores se metamorfoseiam em personagens do imaginário absurdo que nós mesmo produzimos e incutimos nos actores, com nossos olhares presos nos seus, perdidos numa emaranhado de palavras que sobrevoam as nossas mentes. E assim suster na discussão da diferença entre uma tartaruga e um caracol toda a nossa existência em sociedade.
O próprio cenário ecoa este depojamento, a mesa em que celebramos é o leito em que procriamos. Passamos de Jacques ou La Soumission/Jacques ou A Submissão, ao Délire à deux/Delírio a Dois, cantamos La Cantatrice chauve/A Cantora Careca, exercitando as palavras em Exercices de conversation et de diction françaises pour étudiants américains/Exercícios de Conversação e Dicção Francesas para Estudantes Americanos, para acabar com La Leçon/A Lição, para finalmente percebermos que os pequenos chapéus multicoloridos não são um mero reflexo da celebração, mas evocam o lado mais grotesco da tragédia quotidiana. Não é fatalista, é factual. A discussão da diferença entre o caracol e a tartaruga é nada mais nada menos que a eterna dificuldade em comunicar: ROBERTE: Chat... Chat.../JACQUES: Chat... Chat.../ROBERTE: Chat... Chat.../JACQUES: Chat... Chat.../ROBERTE: Chat... Cha-a-a-at.../JACQUES: Chaaaaat... Chaaaaaaaaaat...

"Dislocation aussi, désarticulation du langage" Ionesco

HELMET



Álvaro Siza Vieira
Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, Brasil
Vencedor do Leone D'Oro na Bienal de Veneza em 2002, a Fundação Iberê Camargo mostra Siza Vieira no seu melhor. A força da curva e dos tramos rectos intersectantes, só atestam a facilidade e controlo dos dispositivos disciplinares e a vontade de os levar a um exponencial transcendente.
Uma riqueza formal que se aproxima de maneira inequívoca das fases finais de Le Corbusier e Frank Lloyd Wright, onde a manipulação formal atinge novos limites. Tal como estes, o fascínio das rampas é aqui reforçado pela sua separação e autonomia face ao volume concreto, como se se tivessem deslocado e formado um novo volume quase material.
Tal como referido por Carlos Eduardo Comas, de longe, as rampas assemelham-se à 'Helmet Series' de Henry Moore. Estas rampas disformes parecem quase continuar a sua pesquisa do interior-exterior, interior no interior, interior no exterior, exterior no interior, exterior no próprio exterior, a eterna questão do dentro e do fora, e do fora cá dentro, tal é a ambivalência do espaço intersticial entre as rampas levitantes e o volume agarrado ao céu.
Entramos num espaço que aprentemente é encerrado pela abóbada celeste, um dentro ainda cá fora.
Relembrando Henry Moore, os consequentes volumes que se espraiam pelo terreno assemelham-se a um braço de uma armadura, com articulações diversas para a criação de múltiplos espaços entre o interior e o exterior.
As rampas que formam fugazmente este espaço ilimitado parecem nos trazer à ideia as múltiplas rampas do centro cultural SESC de Lina Bo Bardi, os rasgos explosivos na parede de betão, uma certa ingenuidade sabida do efeito transcendente que se quer criar. Como num desenho de criança, onde na imperfeição se encontra a mais pura das verdades, a verdade do espaço. Nunca presente materialmente, sempre omnipresente metafisicamente.


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Emanuel de Sousa, arq