'Pela Música, privar as palavras dos seus perigos.
Pela música ainda, carregá-las de novos perigos.' Elias Canetti, Die Provinz des Menschen
'Eraritjaritjaka' é em si mesmo um enigma, entre muitos, presentes na nova peça de Heiner Goebbels, a qual cria e recria realidade sobrepostas, testando constantemente as nossas capacidades sensoriais na percepção e entendimento de um mais profundo segredo.
Depois de Ou bien le débarquement désastreux (1993) com base nos diários de Joseph Conrad, Heiner Muller e Francis Ponge, passando por Max Black (1998) a partir de notas de Paul Valéry, Lichtenberg, Wittgenstein e Max Black; Goebbels termina esta triologia dedicada aos diários íntimos, abraçando Elias Canetti, um escritor 'espontâneo', fragmentário, que através de suas anotações diárias, contrói livros abertos, repletos de 'pequenos poemas em prosa'.
'Sinto-me em casa quando, de lápis na mão, escrevo palavras alemãs e toda a gente à minha volta fala inglês'
Fugindo à estrutura narrativa linear do romance ou à construção rígida do convencional texto dramático, Goebbels retoma a obssessão por este tipo de narrativa aberta, que revela verdadeiramente o pensamento do indivíduo, trabalhando o segredo subjacente a certos instantes passados.
Esta nostalgia obssessiva dá vida a 'Eraritjaritjaka', a palavra aborígene australiana que significa, na sua essência, 'o desejo por algo que se perdeu'. Embora tocando implicitamente temas como a cidade e a casa, e, o contemporâneo sentimento de errância e desenraizamento modernos, trabalha-se essencialmente este estado de angústia e melancolia, por entre 'mordazes observações sobre sujeição e dependência - das palavras entre si, do texto e da música, das próprias pessoas umas em relação às outras'.
A produção inicialmente concebida para o Théâtre Vidy-Lausanne, constrói-se sob um regime austero de linhas geométricas, topografias rigorosas, limites, como o preto e o branco, em cima e em baixo, a ausência e a presença.
Polaridades que não se esgotam na dialética entre palavras e música, desde logo envolvidos pelo som do Quarteto de Cordas de Chotakovitch, interpretado pelo Quarteto Mondrian de Amesterdão, mas que se estendem a outros elementos como o espaço cénico, a luz, o filme, na ambição de Goebbels em criar um 'conceito alternativo de obra de arte total'.
Esta terceira colaboração entre Goebbels e o actor alsaciano André Wilms pode mesmo ser fatal para aquilo a que chamamos modernidade, para a ordem que determina e atravessa todas as coisas, segundo Sabine Haupt. Wilms encarna o maestro, o demagogo, o domador de animais, todas passagens extraídas de Mase and Macht (Massa e Poder).
E de repente Goebbels faz o inimaginável: derruba paredes, tira de cena o seu actor e projecta-o numa 'série de níveis sobrepostos que fazem eco um dos outros'.
A casa em miniatura que acompanha Wilms no seu movimento abstracto pelo vazio, é agora projectado numa casa de tamanho real, um tela bidimensional que nos permite passar a acompanhar o actor num percurso 'real', inicialmente pelo porto, depressa para nos prender a um universo paralelo de melancolia, circunscritos ao apartamento de de uma personagem baseada no sinólogo Kien, o bibliófilo do romance de Caneti Auto-da-Fé.
Perturbando a sua 'minuciosamente orquestrada mesquinhez', os seus gestos banais e momentos privados, a câmara transforma toda uma realidade em algo verdadeiramente monstruoso, realçando a repressão e dependência do indivíduo nos mais pequenos detalhes do dia-a-dia da nossa vida.
O espaço confinado a que nos entregamos, a figura solitária em que nos revemos devorando os seus próprios vestígios, relembra uma grotesca meticulosidade à la Jacques Tati, trespassando um quadro de René Magritte, o outro lado do espelho de Alice no País das Maravilhas, numa experiência visual muito próxima da surrealidade kaufmaniana de Being John Malkovich ou de Eternal Sunshine of the Spotless Mind.
Entramos no registo mais íntimo, quase voyeurista, entrando literalmente no filme, avassalados pela profusão de associações de palavras e imagens, assombrados por vozes de crianças e mulheres, paixões passadas, atordoados pela música e colagens de texto em contraponto.
Transgredimos limites, do palco para o filme e do filme para o palco, para no final perceber que este eterna quimera de descobrir o nosso lugar se encontra em nós mesmos.
'Cobarde, verdadeiramente cobarde, é aquele que tem medo das suas lembranças.' Elias Canetti
Pela música ainda, carregá-las de novos perigos.' Elias Canetti, Die Provinz des Menschen
'Eraritjaritjaka' é em si mesmo um enigma, entre muitos, presentes na nova peça de Heiner Goebbels, a qual cria e recria realidade sobrepostas, testando constantemente as nossas capacidades sensoriais na percepção e entendimento de um mais profundo segredo.
Depois de Ou bien le débarquement désastreux (1993) com base nos diários de Joseph Conrad, Heiner Muller e Francis Ponge, passando por Max Black (1998) a partir de notas de Paul Valéry, Lichtenberg, Wittgenstein e Max Black; Goebbels termina esta triologia dedicada aos diários íntimos, abraçando Elias Canetti, um escritor 'espontâneo', fragmentário, que através de suas anotações diárias, contrói livros abertos, repletos de 'pequenos poemas em prosa'.
'Sinto-me em casa quando, de lápis na mão, escrevo palavras alemãs e toda a gente à minha volta fala inglês'
Fugindo à estrutura narrativa linear do romance ou à construção rígida do convencional texto dramático, Goebbels retoma a obssessão por este tipo de narrativa aberta, que revela verdadeiramente o pensamento do indivíduo, trabalhando o segredo subjacente a certos instantes passados.
Esta nostalgia obssessiva dá vida a 'Eraritjaritjaka', a palavra aborígene australiana que significa, na sua essência, 'o desejo por algo que se perdeu'. Embora tocando implicitamente temas como a cidade e a casa, e, o contemporâneo sentimento de errância e desenraizamento modernos, trabalha-se essencialmente este estado de angústia e melancolia, por entre 'mordazes observações sobre sujeição e dependência - das palavras entre si, do texto e da música, das próprias pessoas umas em relação às outras'.
A produção inicialmente concebida para o Théâtre Vidy-Lausanne, constrói-se sob um regime austero de linhas geométricas, topografias rigorosas, limites, como o preto e o branco, em cima e em baixo, a ausência e a presença.
Polaridades que não se esgotam na dialética entre palavras e música, desde logo envolvidos pelo som do Quarteto de Cordas de Chotakovitch, interpretado pelo Quarteto Mondrian de Amesterdão, mas que se estendem a outros elementos como o espaço cénico, a luz, o filme, na ambição de Goebbels em criar um 'conceito alternativo de obra de arte total'.
Esta terceira colaboração entre Goebbels e o actor alsaciano André Wilms pode mesmo ser fatal para aquilo a que chamamos modernidade, para a ordem que determina e atravessa todas as coisas, segundo Sabine Haupt. Wilms encarna o maestro, o demagogo, o domador de animais, todas passagens extraídas de Mase and Macht (Massa e Poder).
E de repente Goebbels faz o inimaginável: derruba paredes, tira de cena o seu actor e projecta-o numa 'série de níveis sobrepostos que fazem eco um dos outros'.
A casa em miniatura que acompanha Wilms no seu movimento abstracto pelo vazio, é agora projectado numa casa de tamanho real, um tela bidimensional que nos permite passar a acompanhar o actor num percurso 'real', inicialmente pelo porto, depressa para nos prender a um universo paralelo de melancolia, circunscritos ao apartamento de de uma personagem baseada no sinólogo Kien, o bibliófilo do romance de Caneti Auto-da-Fé.
Perturbando a sua 'minuciosamente orquestrada mesquinhez', os seus gestos banais e momentos privados, a câmara transforma toda uma realidade em algo verdadeiramente monstruoso, realçando a repressão e dependência do indivíduo nos mais pequenos detalhes do dia-a-dia da nossa vida.
O espaço confinado a que nos entregamos, a figura solitária em que nos revemos devorando os seus próprios vestígios, relembra uma grotesca meticulosidade à la Jacques Tati, trespassando um quadro de René Magritte, o outro lado do espelho de Alice no País das Maravilhas, numa experiência visual muito próxima da surrealidade kaufmaniana de Being John Malkovich ou de Eternal Sunshine of the Spotless Mind.
Entramos no registo mais íntimo, quase voyeurista, entrando literalmente no filme, avassalados pela profusão de associações de palavras e imagens, assombrados por vozes de crianças e mulheres, paixões passadas, atordoados pela música e colagens de texto em contraponto.
Transgredimos limites, do palco para o filme e do filme para o palco, para no final perceber que este eterna quimera de descobrir o nosso lugar se encontra em nós mesmos.
'Cobarde, verdadeiramente cobarde, é aquele que tem medo das suas lembranças.' Elias Canetti